O vento tocava o rosto de Christine, enquanto ela dirigia com a capota de seu conversível totalmente aberta. No banco de trás, algumas poucas malas, com muito poucas histórias para contar do passado que queria deixar para trás. Em alta velocidade, ela cruzava o deserto em seu carro, indo para o Norte, buscando uma nova vida, num novo local, onde fosse a mulher sem rosto e sem passado que sempre desejou ser. Não importava quem iria ficar para trás, ou o que ela deixaria de viver em sua vida de sempre… Ela simplesmente colocou o pé na estrada e preferiu viver no anonimato.
Ela pára em um posto de gasolina. Sai do carro, acende um cigarro, tira os óculos escuros, o lenço do pescoço, o chapéu… Entra na lojinha de conveniência e pede uma Coca-Cola. O frentista termina de encher o tanque, conferir o óleo do carro… Ela termina seu cigarro e, quando se dirige ao seu carro, nota que está em uma pacata cidade, próxima de onde ela deveria estar indo. Cansada por estar atrás do volante a pelo menos uns três dias, resolve fazer uma parada de alguns dias.
Levratti era uma cidade bonita. Christine passeava devagar com o carro até chegar a praça principal, onde estacionou, procurando um lugar para ficar. A praça da cidade era como todas as praças de cidades pequenas: tinha uma canteiro de pequenas violetas, um pipoqueiro, banquinhos… Em volta da Praça de Levratti, havia a Igreja, a mercearia, a livraria, a floricultura e um pet shop. Um pouco mais distante da praça, ficava o hotel, para onde Christine se encaminhou.
Ao entrar no hotel, Christine foi remetida a uma outra época: os móveis, a decoração… Parecia estar no século XIX. Inclusive a roupa dos funcionários do hotel era adeqüada àquela época. Foi quando Christine teve o maior susto da sua vida…. Na sua frente surgiu a dona do estabelecimento: era a própria Christine se olhando num espelho de um tempo que ela não viveu. Ambas pararam, se olharam…. O medo dominava Christine enquanto ela via sua sósia sorrir alegremente. Então ela se apresentou…
“Olá, Christine, bem vinda de volta. Eu sou tudo o que você tenta esquecer. Sou suas lembranças mais doloridas e suas lembranças mais felizes. Sou você, sou seu passado, sou suas memórias… Sou tudo o que você escolheu e tudo que você deixou de escolher. Sou seus medos e suas tristezas, sou seus sonhos e seus pesadelos. Não, minha querida, você não pode fugir de você, não pode fugir de seu passado….”
Lentamente, a sósia de Christine segurou sua mão e a levou até um espelho. Era o espelho de suas memórias. Christine olhou e se viu ali, com quatro anos de idade. Viu seu pai chegando bêbado de madrugada, indo até o seu quarto e a violentando. Se viu com quatorze anos, ainda sendo violentada pelo pai enquanto sua mãe estava em um manicômio e ela cuidava de seu irmão recém-nascido. Se viu um pouco mais velha, tentando suicídio, com apenas dezesseis anos. Se viu sendo mãe aos vinte um e apanhando do pai do seu filho alguns anos depois. Se viu grávida de oito meses, de gêmeos, sendo atropelada às vésperas do Natal, indo parar no hospital às pressas, com seus dois filhos mortos, Giovani e Helena. Se viu indo embora de sua cidade no meio da madrugada após uma briga com seu segundo marido, voltando para casa de seu pai. Se viu fazendo novos amigos maravilhosos, a família que Deus a permitiu escolher. Christine simplesmente se via naquele espelho. Viu seus primeiros amores, suas primeiras desilusões, suas primeiras mágoas, as primeiras vezes em que magoou alguém…. Era ela, era a sua história. Então entendeu que não importava para onde ela fosse, suas lembranças e seu passado iriam com ela. O choque foi tão grande, que Christine desmaiou.
Na sala de trauma, o médico de plantão manda parar os procedimentos de ressucitação. A explosão no posto de gasolina tinha sido causada por um cigarro jogado no chão. O médico coloca a mão sobre a testa de Christine, escorregando suavemente pelos seus olhos, os deixando fechados. Hora da morte: 19:21h.